Conseqüências da mastigação unilateral no desenvolvimento e equilíbrio do sistema estomatognático

José Augusto Marques Junior *
Paulo Roberto J. Lenci**

* Pós-graduado em Ortodontia pela Univ. Camilo Castelo Branco- São Paulo; Residência no Oral Facial Pain – Kentucky University em Lexington, EUA

** Especialista em Radiologia Oral pela Unicamp; pós-graduação (Aperfeiçoamento) em Morfologia, Disfunção da ATM e Músculos da Mastigação pela UNIFESP; pós-graduação (Aperfeiçoamento) em Ortopedia Funcional dos Maxilares pela ACDC-Campinas

Sinopse

O Objetivo deste trabalho é demonstrar a importância da função mastigatória do indivíduo e as variações anatômicas ocorridas quando da mastigação unilateral. Sendo seguidor da filosofia da Reabilitação Neuro Oclusal, o autor procura enfatizar a importância do tratamento profilático através dos princípios da RNO, atuando-se logo que se observa uma disfunção. Para demonstrar as variações, desenvolveu um diagrama – DIAGRAMA MARQUES DAS LEIS PLANAS DE DESENVOVIMENTO – , o qual acrescenta outras alterações ocorridas não enunciadas nas Leis. O diagrama é de fácil visualização, contendo basicamente todas as Leis , constituindo-se em um auxiliar muito útil a qualquer profissional da área, possibilitando o claro entendimento dos princípios fundamentais da Reabilitação Neuro Oclusal (RNO).

Unitermos

  • (RNO) Reabilitação Neuro Oclusal
  • (ATM) Sistema Estomatognático – Sistema Mastigatório – Articulação Têmporo Mandibular
  • (AFMP) Angulo Funcional Mastigatório Planas

Ao realizarmos uma reabilitação oral , devemos ter como principal objetivo equilibrar e recuperar funcionalmente o Sistema Mastigatório. Para tanto, devemos ter em mente a principal função que o sistema oral realiza: a mastigação.

A mandíbula, tendo articulações bilaterais com anatomias iguais e formada por duas hemi-arcadas simétricas , deve ter condições para funcionar igualmente de ambos os lados. Analogamente, temos duas pernas e andamos com as duas igualmente; se passássemos a usar apenas uma, andaríamos aos pulos, prejudicando nossa capacidade de caminhar e comprometendo sua função de locomoção e de outras estruturas do corpo.

Larato (5) diz, em seu artigo, que várias alterações ocorrem em decorrência da mastigação unilateral, como o maior depósito de tártaro e maior perda óssea no lado não mastigante.

Ramfjord & Ash (3), em seu livro, afirmam que a mastigação bilateral alternada, multidirecional, é ideal para o estímulo de todas as estruturas de suporte, para a estabilidade da oclusão e para a limpeza dos dentes. Diz ainda que a mastigação unilateral não constitui uma função da oclusão ideal.

Sempre temos um refino motor maior em um dos pares. No sistema mastigatório acontece algo parecido, um dos lados tem mais habilidade mastigatória que o outro, porém, ao contrário dos outros órgãos , temos condição de interferir e alterar esta situação, que é determinada por um aspecto físico da oclusão.

O Prof. PEDRO PLANAS, observando isso , detectou o porquê da preferência do indivíduo mastigar de um lado. Através de observações clínicas, enunciou Leis chamadas de “LEIS DE DESENVOLVIMENTO PLANAS”(1):

“Lei da mínima dimensão vertical e ângulo funcional mastigatório planas”(1).

Diz que, partindo-se da oclusão cêntrica (MIC), ao deslizar a mandíbula à direita e à esquerda contatando os dentes , o lado aonde houver o menor aumento do terço inferior da face, é o lado que mastiga. (Fotos 1,2 e 3)

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(Foto 01)                                    (Foto 02)                                     (Foto 03)

Determina-se um ângulo no deslize do incisivo inferior contra o superior e aonde ocorrer o menor ângulo(for mais aberto) , é o lado mastigante.

Certamente, pela lógica, a mastigação unilateral causará uma série de desvios no desenvolvimento, que poderão acarretar alterações de ordem morfológicas em todo o Sistema Mastigatório.

Ela poderá iniciar-se logo no início do processo de mastigação ou após, por hiatrogenia. Segundo Mandetta (4), a mastigação unilateral ou restrita é um modelo de conveniência ou de adaptação à dor, à perda dos dentes e às desarmonias oclusais. A mastigação unilateral também pode originar-se no momento em que os dentes erupcionam e atingem o contato oclusal. Santiago (6) conclui, em seu trabalho, que, nas crianças com mordida cruzada unilateral posterior, a mastigação só se processa do lado cruzado, o que comprova a Lei da Mínima Dimensão Vertical de Planas.

Segundo Linden(2), nenhum osso exibe proporcionalmente tanto crescimento como a mandíbula, que é responsável pelo desenvolvimento maxilar, reafirmando portanto, a importância da mastigação bilateral e alternada para o desenvolvimento normal e equilibrado.

Alguns desvios são descritos nas outras Leis formuladas por PLANAS, onde demonstra como a boca se desenvolve e cresce através da mastigação, a qual proporciona estímulos proprioceptivos.
Temos ainda outros desvios que não foram formulados dentro das LEIS PLANAS DE DESENVOLVIMENTO, que estão intimamente ligados às conseqüências da função mastigatória unilateral.

Segundo Junqueira & Zago (7), a maxila é formada por três origens embrionárias distintas, dois processos laterais(direito e esquerdo), e o processo naso-frontal (interincisivo). ** colocar maxila com “y” (fig.04)

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(fig.04)

Já a mandíbula é formada por dois processos embrionários simétricos, que se unem na sínfise mentoniana, o direito e o esquerdo. Cada um destes processos tem troncos nervosos respectivos e independentes. Estes troncos terminam nos receptores neurais do periodonto (1). ** colocar mandíbula (fig 05)

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(Fig 05)

A mastigação é responsável pelos estímulos que, através dos receptores neurais localizados no periodonto, tratam de levar e retornar os estímulos proprioceptivos que proporcionarão o crescimento e desenvolvimento. Através dos movimentos de lateralidade, por ação do músculo pterigoideo lateral , observa-se o crescimento condilar, a partir de observações feitas na cartilagem condilar, conforme Petrovic, Mc Namara e outros (3).

Lei do desenvolvimento póstero anterior e transversal, (1)

  1. A excitação com tração póstero anterior da ATM do lado de balanceio, produz resposta de desenvolvimento no sentido ântero posterior da mandíbula deste lado.
  2. O atrito oclusal produzido pela mastigação no lado de trabalho, proporciona um aumento da espessura na mandíbula e, na maxila, um desenvolvimento no sentido póstero anterior e transversal.
  3. O atrito oclusal no lado de trabalho produz também um desenvolvimento transversal da mandíbula no lado de trabalho.

Lei do desenvolvimento vertical dos molares e pré- molares (1)

Um excitação ocorrida através do atrito oclusal em qualquer dente de uma hemi-arcada mandibular, produzirá resposta de desenvolvimento no sentido vertical em toda a hemi-arcada do mesmo lado.

Lei do desenvolvimento vertical dos incisivos (1)

Uma excitação por atrito funcional em qualquer dente da região dos incisivos superiores, provocará resposta de desenvolvimento, no sentido vertical, em toda região dos incisivos superiores.

Lei do desenvolvimento da situação do plano oclusal (1)

No ato mastigatório, no lado de trabalho , o atrito oclusal produzirá um esforço mastigatório com intrusão fisiológica dos molares ao canino (guia do movimento de lateralidade), levantando muito pouco o plano oclusal de trás para frente. Simultaneamente, no lado de balanceio, em virtude da trajetória condílica, a mandíbula caminha abaixo e os dentes perdem ligeiramente o contato oclusal no final da excursão lateral mandibular. Procuram, então, o contato com o antagonista, sofrendo uma compensação fisiológica, a qual levará dente e osso alveolar a uma busca de contato oclusal com os dentes antagonistas neste momento.

Se houver mastigação bilateral e alternada, ocorrerá intrusão fisiológica do lado de trabalho e compensação fisiológica do lado de balanceio, estabelecendo, desta forma, uma situação do plano oclusal ideal paralela ao plano de Camper. PLANAS(1) dizia que esta é a principal condição para obtermos o equilíbrio fisiológico do Sistema Mastigatório.

Variações anatômicas ocorridas pela função mastigatória unilateral (1)

Para entendermos as variações anatômicas, mostraremos fotos de um crânio seco, cuja mastigação instalou-se do lado esquerdo. Isto pode ser constatado pelo Ângulo Funcional Mastigatório Planas (AFMP), que é menor do lado direito (fig 6,7 e 8).

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(Foto 06)                                    (Foto 07)                                    (Foto 08)

Conseqüentemente, passou a exercitar assimetricamente a mandíbula e os músculos que envolvem a mastigação, com predominância do lado esquerdo . O côndilo do lado de trabalho (o lado que o indivíduo mastiga) sofrerá, basicamente, movimentos de rotação, não saindo ou excurcionando da cavidade articular.

Já no lado de balanceio (o que o indivíduo não mastiga), o côndilo excurciona na cavidade glenóide, sofrendo o chamado movimento de translação, estimulando o crescimento através do feixe superior do músculo pterigoideo lateral que traciona o disco articular.

Funcionalmente, este crânio teve as seguintes conseqüências em seu desenvolvimento:

Conseqüências anatômicas

Lado de trabalho

  1. Ângulo Funcional Mastigatório Planas (AFMP) mais baixo (menor), menos pronunciado.(referência de um plano paralelo aos incisivos). Fig. 08
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    (Fig 08)
  2. Mandíbula mais curta ântero-posteriormente .fig.09
  3. Mandíbula mais alta e volumosa. Fig. 10
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    (Fig.09 e 10)
  4. Maxila mais ampla transversalmente e adiantada. Fig.11
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    (Fig.11)
  5. O Côndilo estará mais volumoso(hipertrofiado) deste lado. Fig.12.
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    (Fig.12)
  6. A trajetória condílica terá angulação mais pronunciada. Fig.13.
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    (Fig.13)
  7. O Plano Oclusal estará mais alto anteriormente. Fig. 14.
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    (Fig.14)
  8. Na ausência de dentes: Fig. 15
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    (Fig.15)
  • quando não existirem os antagonistas, migrarão em direção ao espaço vazio dos antagonistas, ultrapassando o plano oclusal.
  • caminharão mesialmente sem inclinar-se (quando houver ausência dos dentes contíguos).

Lado de balanceio

  1. O ângulo Funcional Mastigatório Planas (AFMP) será mais alto (maior), mais pronunciado.(referência de um plano paralelo aos incisivos) Fig. 06
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    (Fig.06)
  2. A mandíbula será mais longa, ficará mais comprida no sentido ântero-posterior. Fig.09 e 10
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    (Fig.09 e 10)
  3. A maxila estará mais curta e menos desenvolvida no sentido ântero-posterior. Fig. 04
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    (Fig.04)
  4. O Côndilo é mais esguio, menos volumoso. Fig. 16
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    (Fig.16)
  5. A trajetória condílica será menos pronunciada, com angulação menor. Fig. 17
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    (Fig. 17)
  6. O plano oclusal estará mais baixo. Fig.14
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    (Fig.14)
  7. Na falta de dentes; Fig. 18
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    (Fig.18)
  • Os dentes antagonistas não migrarão no sentido do espaço vazio do antagonista.
  • Os dentes adjacentes não caminharão no sentido mesial , se inclinarão.

diagrama_marques

Para ilustrar e facilmente visualizar as alterações anatômicas originadas pela função assimétrica, desenvolvemos um diagrama – “DIAGRAMA MARQUES”- que permite facilmente visualizar as alterações ocorridas. Fig.19

Conclusão

Com o avanço da tecnologia no mundo moderno, muitos fatores têm contribuído negativamente para o desenvolvimento do Sistema Estomatognático, repercutindo em problemas respiratórios e oclusais. Podemos citar a qualidade do ar respirado nos grandes centros e a textura dos alimentos encontrados no Mundo moderno. Desde o nascimento, na maioria das vezes, a amamentação natural no peito materno não ocorre adequadamente. De igual modo, quando passamos a nos alimentar de alimentos sólidos, estes, por serem de consistência pastosa ou macia, não têm necessidade de serem triturados no ato da mastigação, fator este absolutamente necessário para proporcionar o desenvolvimento natural e equilibrado do sistema estomatognático, através de seus estímulos próprioceptivos.

Nestas condições, esses estímulos de origem externas estão muito aquém da necessidade biológica para o bom desenvolvimento do Sistema Estomatognático. Nós, profissionais, devemos estar atentos a isto, lançando mão de artifícios disponíveis na odontologia para reabilitar o Sistema, agindo sempre preventivamente, se possível . Os meios artificiais a que nos referimos são os ajustes oclusais preconizados por PLANAS (que proporcionam liberdade mandibular, principalmente nos movimentos da lateralidade e que geram estímulos imprescindíveis para o desenvolvimento do Sistema Estomatognático), o emprego dos aparelhos Planas (que proporcionam estímulos que agem sobre o desenvolvimento oral) e a atuação por meio de várias especialidades da odontologia como a Odontopediatria, a Ortopedia Funcional dos Maxilares, a Ortodontia e a Prótese. Devemos observar no entanto, que estes são meios e só poderemos utilizá-los caso constatemos que não provocarão prejuízo de nenhuma forma para a reabilitação do órgão, não lesem os tecidos remanescentes e não interfiram nos requisitos necessários para que a boca funcione adequada e naturalmente.

O Prof. PLANAS em sua “Reabilitação Neuro Oclusal ( RNO)”, propôs uma terapêutica que leva à verdadeira Reabilitação do órgão mastigatório, a qual procura frear ou excitar as terminações neurais receptoras dos estímulos que atuam no desenvolvimento e crescimento do Sistema Estomatognático, para que o indivíduo tenha um fenótipo perfeito sem prejudicar de nenhuma forma os tecidos remanescentes (1).

Uma boca ao se desenvolver com estímulos adequados, desde a época do nascimento, certamente terá um fenótipo perfeito. Existe um postulado de um fisiólogo francês ( Claude Bernard) , no qual se baseia a RNO . “A Função faz o órgão e o órgão propicia a função”(1).

Visto isto, devemos sempre intervir o mais cedo possível atuando para alcançarmos o equilíbrio do Sistema Estomatognático e desta forma, reverter os desvios de normalidade para que o órgão bucal tenha um desenvolvimento harmônico e equilibrado.

Referências bibliográficas

  1. PLANAS, PEDRO- Rehabilitacion Neuro Oclusal pgs.13 e 27 a 56- 1994.
  2. LINDEN, VAN DER-Crescimento e Ortopedia Facial pag. 188 , 1990.
  3. RAMFJORD, S & ASH, M.M – Oclusão- 3 EDIÇÃO, Editora Interamericana, pg. 106-109
  4. MANDETTA, S- Causas da Mastigação Unilateral e Importância do Ajuste Oclusal das Guias Laterais na sua Correção.- Revista Paulista de Odontologia, Ano XVI n.1- Janeiro/Fevereiro 1994
  5. LARATO, D.S.- Efects of Unilateral Mastigation – Journal of Oral Medicine, Vol 25 n. 3- July-Septenber 1970.
  6. SANTIAGO JR, ORLANDO – Incidência de Mastigação Unilateral em Crianças com Dentição Decídua e Dentição Mista em Estágio Inicial com Alimentos Fibrosos e Macios – Revista Faculdade de Odontologia de Porto Alegre, Vol. 35, n.1 p28-31- Agosto 1994.
  7. JUNQUEIRA, L.C.U & ZAGO, D – Fundamentos da Embriologia Humana- Edtora Guanabara Koogan, 2 edição, 1977, pgs.111.
  8. SIMÕES, W. A. – Ortopedia Funcional dos Maxilares- Editora Livraria Santos, 1 Edição, 1985.

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